O café já meio frio, gosto de velho. Misturado com o cigarro, um aceso na guimba do outro. Juntos só fazem aumentar a dor de estômago. Que importa? Pior de tudo é este vazio na cabeça. Se pudesse espremeria o cérebro e produziria idéias em gotas. E as espalharia sobre o papel. A cesta está abarrotada deles. Todos amassados. Os seus rabiscos não merecem mais que estarem em folhas amassadas, picadas e jogadas no lixo.
O silêncio da madrugada ao invés de ajudar na concentração só faz distraí-lo. Olha em volta e vê o desalinho do quarto parecendo refletir os pensamentos embaralhados. É tão simples. Tem o tema, a definição das linhas gerais e nada! Palavras chochas e vazias. Frias quando deveriam exprimir emoção, tensão. Períodos longos e prolixos. Droga! Merda!
Não dá para entender o que se passa. Outrora (huum!) as idéias fluíam, parecia até que brotavam espontaneamente do papel. As palavras escritas adquiriam um ritmo, cuja cadência levava o leitor ao envolvimento total. Era uma surpresa agradável imaginar um texto e ele surgir do nada.
Diziam que ele brincava com as palavras. Não era verdade. Ao contrário, ele as amava e, apesar da intimidade com elas, o respeito era o que marcava esta relação. Uma relação séria, profunda. Na verdade, não com as palavras, com a escrita. Quando instado a falar, não conseguia verbalizar coisa alguma.
Sempre fora mais para misantropo. Gênio difícil, quase intratável. Puro mecanismo de defesa. Nem poderia dizer-se tímido. Timidez é uma coisa meio doce. Amargo, duro e frio com todos. Ele próprio se achava desagradável. Sofria com o jeito quase grosseiro de lidar com o mundo e as pessoas. Fazia parte da sua natureza, conformava-se.
Entretanto, sempre foi um observador sagaz e sensível. Talvez pela diferença entre o seu comportamento e o seu texto, não sabe ao certo, adotou um pseudônimo. Na primeira vez, por imposição do concurso literário. Depois, preferiu o pseudônimo ao próprio nome. Preservaria o autor, afastaria os eventuais admiradores.
Espectador da vida, mas seus escritos... Eram a própria vida! Pareciam produto e síntese de uma larga experiência, de uma vivência, só ele sabia, inexistente.
A fonte secou. Cansaço, pensou. Fruto da impiedosa cobrança dos editores. A pressão por artigos e livros. Nada que umas férias e um bom descanso não resolvessem. Nem queria mais voltar de seu refúgio. As duas semanas programadas viraram um mês, esticou mais um pouco e mais outro mês.
Os editores, amedrontados, tentaram, com muito tato, chamá-lo de volta à vida. Poderia até mesmo morar ali, mas escrevendo algo. Se fosse insatisfação financeira, refariam os contratos. Qualquer coisa, mas o mundo sentia a falta de seus escritos. Mas ele não. E, como sempre, o que importava eram as suas necessidades, os seus desejos. Nada o comovia. Até que ele próprio sentiu, primeiro, a vontade, depois, a necessidade e, a seguir, a compulsão de escrever.
Comparou-se a alguém submetido a um trabalho de recuperação ortopédica que precisa reaprender os movimentos mais simples. Demoraria um pouco, mas logo iria readquirir a capacidade febril de produzir como antes. E não aconteceu.
Nervosismo, angústia, desespero. A vida perdera o único sentido. A sombria idéia de suicídio, afastada como uma assombração. Voltou com mais freqüência e intensidade. Rendeu-se. Conformado, parecia lidar com uma fatalidade, um processo inexorável, cujo trágico desfecho não poderia ser alterado.
Apenas a apatia e a falta de iniciativa impediam o suicídio. O inevitável suicídio. Sendo inevitável, teve que tratar dos detalhes. Passos errantes, vazio na cabeça, ardência no estômago. Além de inevitável, o suicídio era inadiável. Mesmo sem amigos ou entes queridos, sentiu necessidade de se justificar. Começou a escrever a carta de despedida. Sem mais café ou cigarro. Só ao amanhecer, contemplando o seu melhor texto, se deu conta de que tudo voltara ao normal.
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