segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Em nome do vestido rosa




Cinara Nahra
Professora de ética da UFRN e co-autora do livro Através da Lógica

Foi com profunda tristeza e preocupação que li a notícia de que a garota que foi brutamente e moralmente insultada em um estabelecimento de ensino superior no interior de São Paulo, no mês de outubro do ano de 2009 do século XXI, tinha sido (pasmem!) expulsa do referido estabelecimento sob a alegação, entre outras, de que ela tinha (sic) “desrespeitado princípios éticos, a dignidade acadêmica e a moralidade”.

Como professora de ética devo dizer que está havendo aqui uma brutal inversão de valores, que, aliás, é estratégia típica dos representantes do obscurantismo. Na realidade quem está desrespeitando os princípios éticos e a dignidade acadêmica são aqueles que não só não pedem desculpas à moça pela humilhação a que ela foi submetida, como ainda, adicionando injúria à infâmia, culpabilizam ainda mais a vítima.

Esta tática da inversão sempre foi usada em relação a nós mulheres. Vítimas de estupro foram muitas vezes sordidamente culpabilizadas pelos abutres-machistas de plantão, sempre prontos a dizer que ”elas provocaram”. Recentemente, em abril deste ano, o ex-arcebispo de Olinda excomungou vários membros (todas mulheres), até uma garota de 11 anos que teve de abortar pois corria risco de vida em uma gravidez provocada pelo seu padrasto, que a estuprou. O arcebispo considerou o aborto um crime mais grave que o estupro e o abuso sexual, e a menina só foi salva graças à ação dos médicos, que deram ouvidos à razão e à ciência e não à ignorância.

Por que a garota do vestido-rosa-curto teria desrespeitado a ética? John Stuart Mill, filósofo inglês do século XIX estabeleceu um princípio ético, conhecido na filosofia como o princípio da liberdade, que afirma o seguinte: “a autoproteção constitui a única finalidade pela qual se garante à humanidade, individual ou coletivamente, interferir na liberdade de ação de qualquer um. O único propósito de se exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro e uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar dano aos demais”. Perguntemos então: que dano poderia um vestido rosa-curto causar a qualquer pessoa? Por acaso alguma das pessoas que estavam lá, naquele momento, poderia ser vítima de um ataque cardíaco ou poderia transformar-se em uma estátua de sal diante de tal ‘dantesca’ visão? Todos nós sabemos que não. Os mais sensíveis, aqueles que por qualquer motivo se sentem ofendidos ao olhar para pernas femininas descobertas, estes poderiam ter, simplesmente, virado o rosto para o outro lado. Mas por que não o fizeram? Por que aqueles que estão acostumados a não olhar para a miséria existente em nosso país, para as desigualdades de classe, para a violência e a criminalidade que está dilapidando nossa sociedade e tirando a vida de milhares de pessoas, resolveram “olhar” para o vestido rosa-curto e insultar sua dona? A resposta talvez esteja, exatamente, na falta de uma educação ético-moral baseada nos princípios clássicos da tolerância, do respeito às diferenças, da não-agressão e da regra de ouro (não faça aos outros aquilo que não queres que te façam!).

O ataque dos colegas à moça do vestido-rosa-curto, este sim, foi um ato de brutal intolerância, fruto do preconceito e do moralismo. O moralismo, eu tenho já dito isto nos meus artigos, é uma deturpação da moral. O moralismo não resiste ao critério da universalidade e do dano. Se a partir de agora todas as mulheres do mundo resolvessem usar vestidos curtos, nenhuma consequência nefasta se produziria. Algo completamente diferente se daria, por exemplo, se universalizássemos comportamentos como a corrupção, a mentira, o roubo, a exploração. Se todas as pessoas no mundo resolvessem ser corruptas, mentir, roubar, explorar, as consequências para a sociedade seriam extremamente negativas. Se assim é, por que muitas pessoas estão dispostas a serem coniventes com os comportamentos do segundo tipo, os comportamentos imorais como a corrupção, o roubo, a criminalidade e a condenar um comportamento tão inocente quanto usar um vestido curto? A coisa se torna ainda mais deplorável quando vemos que aqueles que têm sob si a responsabilidade de dirigir uma instituição de ensino mostram também eles mesmos um comportamento "moralista" e, portanto, imoral, ao penalizarem duramente quem não fez nada de errado e a serem "brandos" na penalidade a todos aqueles que, estes sim, hostilizaram brutalmente um outro ser humano pelo simples fato de ela usar uma roupa, ou comportar-se de um modo que não lhes agradava. Ao aceitar o bullying (molestamento) dos agressores e condenar a vítima, a instituição deu a todos os jovens do país uma preocupante e assustadora lição de preconceito, moralismo e obscurantismo.

Por último, gostaria de lembrar um episódio da nossa história recente. Na época da ditadura militar, Leila Diniz foi duramente atacada pelos moralistas por usar biquíni na praia, estando grávida. Em 1969 ela deu uma entrevista ao jornal o Pasquim aonde ela disse entre outras coisas que “felizmente já amei muito e espero amar mais ainda”. Após esta publicação foi instaurada a censura aos jornais em nosso país, naquele que ficou conhecido como o decreto Leila Diniz. Todos nós sabemos o que aconteceu depois: a brutal repressão que se instaurou no país nos anos 70. Felizmente hoje vivemos em uma democracia plena, e são mínimos os riscos de uma volta a um período ditatorial. Entretanto, os horrores da ditadura, dos anos da repressão, da censura, estão ainda muito próximos de nós para serem esquecidos. O moralismo, o preconceito e a intolerância comportamental andam de mãos dadas com todos os totalitarismos do mundo e é preciso que estejamos muito atentos na defesa dos direitos políticos, reprodutivos e sexuais que foram conquistados, com muita luta, pelas mulheres.

Que o vestido rosa-curto sirva para que a gente reflita sobre os valores da nossa sociedade. Há algo de profundamente perturbador quando um grupo insulta um ser humano por causa do tamanho da roupa que este ser humano usa. Este é um sinal de que há algo de podre no reino do Brasil, e tudo é ainda mais preocupante quando se sabe que há outros casos, alguns até mais graves. Uma trabalhadora já foi agredida por ser confundida com uma prostituta, como se fosse permissível agredir prostitutas! Mendigos já foram queimados por jovens de classe média, como se mendigos não fossem gente! Crimes brutais são cometidos todos os dias, todas as horas e tudo fica por isso mesmo, como se a criminalidade fosse normal e a vida humana não tivesse nenhum valor. Definitivamente há algo de profundamente imoral na sociedade brasileira, mas com absoluta certeza esta imoralidade não tem absolutamente nada a ver com vestidos ou saias curtas.

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